A Menina Mágica: 2 – Luvas Azuis

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Os seus cabelos esvoaçantes e ruivos surgiram em meio à praça de alimentação, bem próximos do restaurante chinês. Perto dali, um garoto da limpeza ficou impressionado com aquela cor de aurora.

Negro e pobre, pensava que outras cores e vidas distintas da sua eram de um luxo tamanho iguais ao fato de alguém poder almoçar comida oriental às 15 horas. Um sonho que poderia ter se as coisas melhorassem um dia para a sua humilde família.

Ele chegou a trabalhar com seu pai como servente aos 12 anos. Acidentado aos 15, quebrou o calcanhar em uma dessas obras de improviso. Pinado tardiamente, teve que se acostumar com o jeito manco de levar a vida.

Fez até o último ano do ensino fundamental, quando leu nos livros de literatura que personagens coxos eram tidos como inferiores para se casar ou para progredir na vida.

Foi quando diminuiu suas expectativas de futuro e decidiu encontrar algum outro trabalho qualquer. Foi então que parou ali, naquele shopping, logo que completou a idade mínima para a vaga disponível.

Sem conseguir apagar aquela cor arruivada de sua memória, entrou no banheiro masculino e colocou suas luvas azuis, bem guardadas em um grande bolso lateral de sua calça marrom.

Desviou-se de um senhor que ajeitava as calças, tentou não respirar profundamente e deslocou-se para o armário dos fundos. Abriu a porta sem dificuldade, sacou sua arma de trabalho e começou a borrifar uma solução alvejante sobre a pia.

A cada cuba, arrancava duas folhas de papel e, meticulosamente, traçava um percurso sobre o mármore. Para a melhor higiene, enxaguava suas luvas na última torneira e as sacudia no lixo.

As gotas sobre as folhas descartadas formavam diferentes imagens mentais. Era um desafio diário ligar os pontos e desenhar algum prospecto naquele cesto.

Não esperava encontrar uma mensagem de futurologia. Era apenas um hábito criativo para quebrar a rotina. Se fosse um escritor da década de 1960, faria o mesmo: arrastaria o carro da máquina de escrever ao ponto inicial, rodaria a folha no cilindro para o primeiro espaço em branco possível e imaginaria uma nova frase a ser conectada pelas letras do teclado, ponto a ponto.

Mas ele não era escritor e, apesar de dominar bem a leitura, mal podia escrever. Sua improvável mão de poeta vivia irritada com o cloro que manuseava. Maldita alergia essa que chegava expor a carne com tamanha coceira. Qual artista não se sentiria orgulhoso em dizer que seu ofício predileto o fazia sangrar? Pena não ser escritor.

As luvas foram um achado do passado que passou a minimizar seu incômodo. A borracha antiaderente não se desfazia com o tempo. O azul tem a ver com a cor da empresa de coleta de lixo que a encomendara. Em uma das raras ocasiões que essa empresa passou na rua empoeirada onde vive sua família, um dos trabalhadores pediu um copo de água a sua mãe.

Ela, com tamanho gosto, trouxe um copo de água de requeijão suando frio retirado da geladeira recém-comprada a suaves vinte parcelas feitas por sua patroa, que preferiu comprar uma nova que não criava gelo.

“E depois dizem que esses ricos são inteligentes. Geladeira sem gelo, onde já se viu?”, ria consigo do seu ousado trocadilho.

O homem da coleta tirou as luvas azuis, colocou-as sobre o muro e, por um momento, comprimiu os olhos ao saborear aquela água filtrada.

– Geison, tire as mãos das luvas do moço.

Com um sorriso molhado, o sujeito disse ter outras no caminhão e presenteou o menino com aquelas, já sujas. Da mesma maneira que recebeu, Geison as vestiu com suas mãos ainda pequenas. Dois anos depois, encontrou  utilidade profissional para este singelo presente de um desconhecido.

◆◆◆

Ouvia, enfim, a descarga. Esperou a finalização do ritual do chapeiro que passou suas mãos às roupas brancas mesmo sem ativar a torneira semi-automática.

“Lavagem a seco, sei”, interpretava Geison, que havia herdado o bom humor de sua mãe.

A graça de Geison com seu pensamento se dissipou logo após ver o estrago deixado pelo chapeiro no boxe usado. Arrastou o carrinho de limpeza, abriu a plaqueta com os dizeres “interditado” e debruçou-se desgraçadamente sobre esse e os sanitários seguintes.

No décimo segundo e último box, ergueu-se rapidamente e, tonto, viu apenas a escuridão. Aos poucos, surgiram cores avermelhadas, que se assemelhavam à rua de sua casa; e também à luz daqueles cabelos ruivos vistos no meio da tarde.

Já próximo das 18 horas, arrependeu-se profundamente de não ter reparado melhor na moça e desesperançou-se ao lembrar o quanto os seus mundos pareciam distantes.

“Onde já se viu? Poder degustar comida chinesa na hora que quisesse?”

Recuperado da tontura, descobriu-se em meio a um banheiro branco e acinzentado, extremamente limpo e sem vida. Retirou o aviso de interditado da porta e guardou as luvas no bolso após limpá-las bem, claro.

Sentiu uma depressão súbita em sua vida e a amassou rapidamente como se fossem duas folhas de papel.

Iria embora decidido a embarcar no ônibus sem comprar aquele habitual milho cozido que fazia de janta ainda na parada. Calculava, assim, que teria recursos suficientes para encher o prato com dois rolinhos primavera no dia seguinte. Junto a economia do jantar, bastava agora sentar na frente do ônibus sem pagar.

Após 75 minutos viagem até ao o ponto final, demonstrou uma dor terrível – que realmente sentia nos pés. Com pena, o motorista permitiu que ele descesse pela frente. Sem passar a roleta, pagou a viagem com um pouco de dramaticidade.

Enfim, teria em breve sua aventura ao mundo oriental.​

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