A Menina Mágica: 1 – O Assovio

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Neste shopping, tudo beira ao marasmo. Há lojas, pessoas e compras. Nos corredores, disputando espaço com bancos, pilastras e letreiros digitais, existe uma outra categoria de estabelecimento que se apresenta como a opção mais próxima do consumidor.

Nela, não é preciso entrar no recinto para olhar e sair sem pagar. Nessa invenção chamada quiosque, o balcão é feito para se debruçar e tocar objetos que, tão caros quanto em um loja normal, encantam por serem mais palpáveis aos frequentadores.

As estratégias para atrair a freguesia exigem um show a parte dos seus vendedores. Cada um à sua maneira, e sempre com pouca idade, oferecem seus serviços de marketing direto.

A moça de touca, por exemplo, convida mãe e filhos gordinhos a degustarem o polvilho doce, o casadinho e outras delícias feitas artesanalmente com muito açúcar industrial.

No expositor de camisetas, a estratégia está na identificação adolescente com as estampas de super-heróis. Na falta de poderes, vendem carapuças de morcego, de aranhas, de homens verdes e de alguns seres estelares.

Mas não se engane em ver beleza em tais quiosques. O apelo visual em tão pouco espaço ocorre porque as lojas em si possuem aluguéis mais caros e demandam maiores estoques e poder de convencimento. Nos estandes de venda, ao contrário, é possível contratar pequenos aprendizes a salários curtos e escalas injustas.

Na dúvida trabalhista, os donos argumentam que são apenas pequenos empreendedores em busca de um futuro próximo no qual poderão, se as vendas assim ajudarem, explorar novos vendedores por meio de gerentes. Nada mais gratificante do que terceirizar uma bronca.

Mas há quiosques que emanam sua própria magia ao público. Não se trata, porém, de encantos das bugigangas eletrônicas expostas ou das comidinhas grátis oferecidas para degustação.  Trata-se de uma mágica sincera feita por quem tira da cartola o seu ganha pão. E é dela que se alimenta esta história de amor.

Bem-vindos a um conto de Romeu e Julieta sem famílias ricas, mas com as devidas pitadas de podridão que só o poder pode oferecer. É a história de um amor sincero ao trabalho, que independe de sua visibilidade social. Nada muito shakespeariano e com doses de romantismo delimitadas pelo horário comercial.

Afinal, a volta para casa é longa demais para outro sentimento que não o sono.

Um assovio despertava o olhar de quem passava. O que se via era uma menina ruiva, de cabelos longos e boca rosada. Uma jovem com seus 16 anos e o encanto de um assovio certeiro.

O espectador mais atento veria que, do assovio, surgia também uma flor sobre o vaso orquestrada por uma varinha mágica. Era o jeito especial que a menina tinha de encantar aqueles que passavam despercebidos, imersos em um mundo que tem o celular como amigo íntimo.

A garota, à revelia das modernidades, dedicava-se mais em colar a etiqueta dos preços nos produtos do que ficar consultando o mundo exterior a partir de alguma plataforma on-line.

As horas se passavam enquanto ela repetia aquele rito. Clientes eram poucos. Mas sempre havia curiosos de plantão para contemplar a sua mágica diária.

Um assovio, uma flor que surgia do vaso e a pergunta dita a quem passava:

–  Vamos fazer uma mágica hoje?

As frases padrões que se seguiam a cada abordagem, “compra uma lembrancinha para eles”, “a senhora não gostou desse aqui, não?”, pareciam banais e pouco encantadoras. Mas o assovio inicial era o suficiente para encantar a quem passasse, a ponto de atrair os menos corajosos a se aventurarem no singelo truque manuseado por aquela pequena bruxa das vendas.

Sua pele clara se destacava diante de um uniforme tão escuro, identificado pelo emblema de seu Stênio, o dono do estande. Foi ele próprio que ensinou à menina toda a magia do negócio. Mostrou que o raciocínio e as mãos rápidas enganam, embaraçam e seduzem qualquer um.

E por que não era ele o vendedor uma vez que tinha tais dotes? O problema era conhecido pelos lojistas mais antigos: sua agilidade com as mãos trazia junto um certo despudor com os meninos que antes o faziam companhia naquele quiosque.

A opção que encontrou foi cortar o feitiço não queimando o bruxo, mas descartando os ingredientes usados. Assim, optava por contratar apenas meninas enquanto se ajustava do último escândalo sabido.

Stênio dizia sempre: para vender, é preciso mostrar desinteresse pela venda e fascinação pelo truque, mesmo que este seja repetido infinitas vezes.

Na sua lógica, o cansaço e a admiração pelo desconhecido seria mais lucrativo do que o simples anúncio do preço. Afinal, aquilo ali não era uma feira para vender as coisas no grito.

A menina levava a sério tanto seu Stênio quanto seu trabalho. Repetia cada ato como um show para críticos ferozes. E ela exigia sempre respeito a cada truque realizado.

– Escolha um número. Escolheu?

Dificilmente alguém tentaria enganá-la quando ouvia seus comandos. Aquele momento era único, especial. Não se podia fugir do truque, não se podia adivinhá-lo. Não antes de pagar por um dos kits anunciados.

– Moça, quanto é este vaso com a varinha?

Essa era uma pergunta cruel para a garota. Ela não respondia. Desvencilhava-se fácil e, quando menos se esperava, lá estava ela com o maldito número escolhido, na carta exposta.

◆◆◆

Havia entrado às 10 horas, recepcionou uns 20 indivíduos e seu expediente ainda estava longe de acabar. Tinha tempo suficiente para mais assovios e outros encantamentos.

Revezava a jornada com uma colega. Cada uma demarcava um lado do corredor. Na hora do almoço, fazia questão de continuar o show. Somente no meio da tarde é que tirava um intervalo e ia rumo à praça de alimentação, descompromissada de seus deveres mágicos.

Nessa hora, sentia-se como uma sereia com pernas ou Sansão sem cabelos. Tornava-se apenas um número aleatório em seu jogo de cartas marcadas.

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