A bandeja sobre o bufê era acompanhada por uma mão e uma tatuagem com os quatro naipes de um baralho. Pintadas cuidadosamente com canetinha, durariam, no máximo, uns 30 minutos. Tempo suficiente para que ela pudesse se servir e mastigar delicadamente os itens escolhidos no restaurante chinês.
Havia, naquele estabelecimento, o poder da proporção. O que antes custava 80 reais o quilo era servido até por um quarto do preço aos trabalhadores do shopping. O desconto era progressivo. A partir das 13 horas, diminuía-se um quarto do valor. Quando o relógio apontava 14 horas, a calculadora subtraía 50%.
Mas a verdadeira alegria acontecia quando o ponteiro dava 15 horas. A menina se aproveitava do descontão oferecido. Em fim de festa, sem muitas opções e com várias outras já expostas em demasia, servir-se era um ato de coragem, astúcia e determinação. E ela o fazia bem.
Buscava diariamente os fritos, a salada e os amendoins desprezados pelos demais. Comia mais barato, distante do tumulto e ainda tinha a chance de se divertir sozinha com a sua moeda de estimação, percorrendo-a entre os dedos: um peso uruguaio que ganhou certa vez de um estrangeiro.
De passagem pelo Brasil, um gaúcho uruguaio se encantou com o assovio da garota e a gorjeteou com algo diferente do que sua simples atenção. Como ofício, vendia e trocava moedas e outros artefatos antigos. Algumas moedas tinham mais valor afetivo do que comercial. Entre elas, carregava uma em especial adquirida de um velho que não lhe pediu dinheiro em troca, mas seus ouvidos para que perpetuasse a lenda sobre aquela prata uruguaia.
De passagem pelo Brasil, um gaúcho uruguaio se encantou com o assovio da garota e a gorjeteou com algo diferente do que sua simples atenção. Como ofício, vendia e trocava moedas e outros artefatos antigos. Algumas moedas tinham mais valor afetivo do que comercial. Entre elas, carregava uma em especial adquirida de um velho que não lhe pediu dinheiro em troca, mas seus ouvidos para que perpetuasse a lenda sobre aquela prata uruguaia.
Um dia, dois jovens indígenas se rebelaram e levaram vários sacos de moedas forjadas com essa prata para o topo da Sierra de Plata. Quando indagados por seus algozes sobre onde haviam escondido aquela pequena fortuna, os dois portavam consigo somente uma única moeda de prata de um “peso fuerte”. Foram logo assassinados, tornando aquele ato símbolo de insubordinação e de alerta aos demais.
Como esse registro oral não agregava valor ao produto, ele a carregava mais como um amuleto. Ao tentar repassar essa história para a garota, ela mostrou sua empolgação com o presente, pegou logo a moeda e a fez desaparecer entre os dedos. O uruguaio se impressionou tanto, que comprou logo o kit demonstrado sem mesmo terminar de contar a lenda.
◆◆◆
Agora, a menina ruiva estava ali brincando com os hashis e a moeda enquanto aguardava o troco. Sentiu uma sombra trêmula ao fundo. Seus sentidos imaginaram a silhueta de um garoto de seu tamanho. Ao olhar vagamente, o viu com um prato bem menos recheado do que o seu.
Ele, para ser educado, pediu desculpas por nada. Queria, na verdade, perguntar seu nome, mas atrapalhou-se com a bandeja, com o prato, com os hashis e com o molho shoyu. Por pouco, não a ensopou. Ela, vendo o desconcerto de quem não tem o costume com aquele tipo de comida, fez surgir na bandeja alheia um biscoito da sorte que sempre ganhava de brinde por ser a cliente mais fiel das 15 horas e afastou-se.
Geison, sentindo-se bobo por ter encontrado e perdido a garota ruiva tão rápido, sentou-se logo para não ser mais observado. Preocupava-se com o seu jeito de andar descompassado. Tinha medo de parecer frágil demais e não ser digno daquela iguaria que comprara com certo sacrifício: dois rolinhos primaveras, um pouco de amendoim, um tempurá murcho e…um biscoito da sorte embrulhado?
Meticulosamente, comeu tudo com os hashis arramados a uma liguinha. Tinha certeza de sua habilidade com as mãos mesmo feridas. Com um olho no prato e o outro no horizonte, abriu o biscoito, quebrou a farinha assada e leu o ditado:
55 – 39 – 35 – 15 – 03 – 07.
Riu de si mesmo com a leitura equivocada, virou o papel e anunciou mentalmente as palavras corretas:
“FAÇA BEM A QUEM TE FAZ MELHOR”.
Pensou pouco sobre aquela frase tão imperativa pois logo viu abaixo do biscoito da sorte uma moeda gasta, de idioma estrangeiro. Dirigiu-se ao caixa para devolver, que o redirecionou para a dona original. Era da garota ruiva, que se sentava bem ao fundo da praça de alimentação.
Ele, sem mesmo lembrar que mancava, flutuou até a mesa da garota que se distraia ao circular com os dedos o desenho recém-feito nas mãos. Parecia ter os pensamentos longe, perdidos em algum mistério indecifrável mesmo a um narrador onipresente.
– É teu?
– É meu, sim!
– Estava no meu prato. Você que colocou?
– Eu? Deve ter caído, muito obrigada.
– Te perguntar uma coisa, posso? Não dói? – e apontou para a tatuagem em sua mão.
Ela riu, demorando a entender esse tipo de pergunta sem propósito. No fundo, queria dizer que doía mais que tatuagem de chiclete. Porém, achou a resposta ofensiva com a ingenuidade da pergunta.
– Não dói. É de canetinha. Você nunca escreveu na mão?
– No caderno é mais comum, dói menos. – Tentou uma graça, olhando sem jeito as feridas das próprias mãos. Ei, você trabalha aqui?
Ela havia sido descoberta. O seu horário de almoço econômico e o canto sagrado deixaram de ser um privilégio ganhando a companhia de um curioso pouco espirituoso, mas que lhe despertava algo bom.
– Não trabalho, faço magias. Quer ver?
Pegou a moeda e a fez percorrer por todos os vãos dos dedos. Jogou-a ao alto, bateu palmas e, no mesmo instante, ela havia sumido.
– Aonde ela foi parar? – perguntou Geison realmente intrigado.
Como de costume, a menina jamais revelaria o truque e ainda daria um desfecho maior. Mostrou as mãos vazias, fingiu que as passaria sobre a orelha do garoto e ordenou que ele verificasse em seu bolso da calça.
Geison afundou suas mãos em busca e, mais desconcertado ainda, disse não ter encontrado nada. Ela, indignada, ordenou que olhasse direito. Como já alertado anteriormente, ela tinha manias com seus truques e odiaria que alguém não a levasse a sério.
– Não encontro. Espera…
Sem jeito, puxou as duas luvas azuis para fora e as balançou sobre a mesa. Ouviu-se, então, o som do encontro entre o metal e o plástico. De dentro para fora de sua luva, revelou-se finalmente a tal moeda.
Então, o que se passou em seguida não exige a descrição em diálogos. É como todo começo de algo bom. Ele sentou, trocou frases soltas, engasgou-se com o excesso de shoyu colocado no rolinho primavera.
Ela riu um pouco, sem tirar os olhos das luvas azuis e das mãos feridas do garoto. Falaram amenidades e quase nada sobre os dois. Mas combinaram se encontrar no dia seguinte. Ele contaria a história das luvas e ela o iniciaria na mágica da moeda desaparecida.
– Tchau. Não se esqueça de ter sorte na vida.
E assim, ela dobrou o corredor rumo ao quiosque. Geison abanou a luva dando um tchau meio curioso com a fala da sorte. Lembrou-se do biscoito e olhou novamente o papel que havia ganhado.
Misteriosamente, havia algumas alterações rabiscadas nos números da loteria com a mesma canetinha usada para retocar a tatuagem: 9 – 55 – 39 – 35–15–03–07.
Rapidamente descobriu o seu número: 9559 5103.
Mas como ele o salvaria em seu celular se mal sabia o nome da garota?
Menina Mágica… Escreveu por alguns instantes.
Depois, virou o bilhete e encontrou algo mais doce:
“FAÇA BEM A QUEM TE FAZ MELHOR”
E salvou o número como: Mel, a menina mágica.