(Corrigido, finalmente!)
Na barraquinha de cachorro-quente – a febre dos lanches para os funcionários da casa – sempre tem um cara negro e outro branco, o último tem poucos cabelos. O primeiro tem uma expressão mais séria. Os dois devem ter na faixa de 35 anos. O negro me parece mais sério, seu nome é Marcos. O branco é Flávio, mais alegre.
Como de costume, fui comprar para mim e para a minha irmã alguma de suas preciosidades. Um belo X-Frango Salada. Como de costume, o X-Frango Salada acabou antes do tempo. Como de costume, eu peço um X-Bacon e aguardo o fritar da chapa. Não como de costume, eu encontro no local o Marcos, uma senhora branca de uns 70 anos de idade e uma moça de uns 25 anos de idade – contei os anos em seu rosto. Parece esta última que já sofreu muito. Não consigo dizer se é bonita ou feia. Apenas, um pouco triste, mas talvez seja só impressão. Flávio não estava presente e, como de costume, tenho o peculiar hábito de analisar as pessoas. Não sei se é certo ou errado, mas me instiga a possibilidade de criar identidades e personalidades para elas. Sobre a senhora, eu não sei o nome. Devo ter ouvido dona Ana. Mas as senhoras em sua maioria são dona Ana. Posso ter ouvido esse nome algum dia e o associado àquela senhora.
Analiso a velocidade da reação de cada pessoa para o atendimento com os clientes. Poucos no momento – eu, dois senhores de 40 anos aproximadamente e um pedido via telefone celular – É, eles também entregam no prédio. Basta pedir, sem contar que grampeiam um bombom no pacote para alegrar os fregueses. A moça é um pouco lerda. A senhora é devagar por causa de sua idade. Mas muito prestativa. “Marcos, quer que eu faça alguma coisa? Ajuda?”. Marcos demonstra em seu rosto que não considera a senhora e também a moça muito úteis no momento. Ele é parecido comigo. Não sabe trabalhar com ajuda. Atrapalha-se mais, pois está acostumado a fazer de um modo e ensiná-lo a alguém ou se adaptar a situação não é com a gente. Contudo, Marcos é sério o que não impede de ser uma boa pessoa. Afinal, seriedade não está relacionada ao ser em essência. Apenas, relacionado ao seu humor. Responde meio sem-graça e secamente. “Não precisa, dona Ana”. Arrepende-se do que disse. Logo depois, pede a dona Ana para fazer dois cachorros no molho para os senhores que aguardam. Hoje, vale realçar, não pedi um X-Frango Salada e nem acabei com um X-Bacon. Troquei o meu pedido para um hot-dog na chapa, mais caro 20 centavos da opção ao molho. Posso me dar a esse desfrute. Acho que sou burguês.
Ah, Dona Ana! Sua calma é tão bonita. As pernas não respondem mais ao dinamismo das vendas. Devagar, ela consegue fazer os dois cachorros-quentes. No processo, vejo Marcos espiá-las várias vezes. Está preocupado. Medo dela não sair bem sucedida. Mas ela é sábia e bondosa. Além disso, ainda critica a salsicha que está muito mole. O pedido precisa ser entregue. Ana sugere que Marcos vá e a deixe com a moça tomando conta. Marcos sabe que isso não é possível. Marcos indica a moça. Ela que vá. Todas as instruções são passadas. Marcos e dona Ana comentam sobre a capacidade da moça. “Meu filho, ela sabe ler?”. Marcos responde: “Bom, ela me disse que já fez o segundo grau.”. Dona Ana comenta sabiamente: “Ah, que bom, meu filho. Quem tem estudo, tem futuro.” De repente, um dos dois homens que saboreiam seus cachorros quentes de salsichas não tão consistentes comenta: Verdade, senhora, verdade!
Depois de uma discussão dos dois homens para dividirem uma coca-cola, depois da descoberta que um deles esqueceu de cumprir seu serviço para comer na maravilhosa barraquinha do Flávio, pedem uma coca-cola. No mesmo instante, eu pego o meu pedido e peço, também, uma bela duma coca. Marcos me entrega. Dona Ana não entrega aos dois homens. Dona Ana pede mil desculpas depois. Teme que o homem tenha desistido de tomar a coca por sua demora. Mas não foi, afirma ele. Foi porque a salsicha ta macia. “Não tá seco”, diz ele. “Tá ótimo, não precisa de mais nada não”. Viu, se a salsicha estivesse no ponto, o Flávio, dono da barraquinha, poderia ter ganhado mais um pouco. Uma coca-cola a menos, Dona Ana se sente culpada. Contudo, não foi culpa dela.
Agora, Dona Ana se aproxima dos homens, senta-se perto deles, eu do lado quase, e se desculpa pela última vez travando a conversa derradeira.
–– Desculpa, meu filho, sabe como é que é. O meu Flávio foi fazer quimioterapia hoje e barraquinha sem dono fica uma confusão só, né?
Eu achei que o refrigerante que o Marcos tinha pego fosse o de vocês.
Desculpem-me!
–– Não foi culpa da senhora, não! Eu tenho que parar de beber Coca mesmo. Ta bom o lanche assim. Não se preocupe.
–– Quimioterapia? – pergunta o outro.
O céu estava semi-nublado, sereno, depois de dias de intenso calor, uma hora a chuva iria deixar as árvores verdes. Dona Ana que sabia disso, responde numa calma mágica:
–– É sim! Tem um caroço. Ele ta na sua sétima sessão. Teve uma vez que ele ficou internado e eu falei pro meu velho que não havia mais esperança. Mas ta aí. Nunca houve um caso desses na família. O senhor conhece o Fábio, o irmão dele, quase deu um negócio desses, mas tá bem.
–– Graças a Deus. Deus sabe o que faz – responde o senhor que esqueceu de cumprir o seu serviço porque a tarde estava linda.
Eu preferi presenciar a cena, não falar nada. Paguei e fui-me embora, encurtando a história. Encurtando a história porque tinha muito o que pensar. Pensar na sabedoria da senhora que tratou tudo com uma paz no coração, uma paz em sua alma.
Eu, se fosse ela, estaria desesperado. Porém, ela substituía Flávio enquanto ele se submetia a uma simples quimioterapia.
Espero envelhecer sabiamente como essa senhora.
Epílogo:
Depois de ter recebido o troco, ouço:
–– Obrigado, amigo! – diz Marcos.
–– Que isso, obrigado você – além do bom cachorro-quente, adorei Dona Ana.
–– Vai com Deus, meu filho. Deus te abençoe! – sussurra Dona Ana.
Só me resta dizer:
–– À senhora, também…à senhora, também.