Primeiro amor

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Aqui a poesia de onde tudo começou.

Tatiana tinha seus 6 anos. Era uma garota branca, de cabelos pretos e lisos. Parecia ter vindo ao mundo para atrair a atenção dos outros. Ao menos, a minha. Na educação infantil, dividíamos a atenção da professora e a hora do recreio. Havia também um valentão hercúleo, de nome grego, menino forte e loiro. Fazia estrepolia com a ingenuidade dos outros. Primeiro, maltratava e depois nos ensinava a ser homem. Sim, homens aos 6 anos de idade.

Teve um dia em que me vi em um grande desafio escolar: colar grãos de milho em um desenho copiado no mimeógrafo. Não bastasse aquele cheiro de álcool, era eu desajeitado. A cola e os grãos mais ficavam presos nos meus estabanados dedos do que no papel já todo borrado pelas tentativas frustradas. Eis que encontrei uma solução aversa a todos os meus princípios, os quais ainda não sabia que os tinha.(Afinal, a culpa cristã ainda não havia chegado de vez para me atormentar).

A professora disse que só iria liberar para o recreio aqueles que terminassem o engenhoso trabalho de transposição. “Não nos condicione, professora! Assim, você alimenta nossos demônios internos”, pensaria hoje. Pois peguei a folha pronta do colega ao lado e a entreguei como se minha fosse.

Não sei se no automático, ou atenta a sua própria mente, ela apenas questionou-me se já não havia escrito meu nome. Ali aparecia Hugo. Para a professora, todos nós éramos iguais. Ao menos, naquele dia. Eu disse que havia um erro e soletrei meu complexo nome. Ela simplesmente riscou o Hugo da folha e escreveu a nova senha, que destravou o acesso ao pátio. Agora sim, tinha eu a carta de saída livre da prisão enquanto Hugo, imagino, teve que se justificar pela inesperada incompletude do seu trabalho.

O fato é que nenhum movimento é feito por mera casualidade. Até mesmo aqueles que são, sim, casuais. No recreio, eu via Tatiana alegre, brincalhona. Com o valentão Hércules a tira-colo, falou-se em beijo na bochecha. Eu iria à loucura. Beijar a bochecha de Tatiana seria um ganho e tanto ao meu dia, após cometer tal ousadia. Mas primeiro atravessou-me Hércules para beijá-la. Na incapacidade de empurrá-lo, eu a empurrei. Sabe se lá se por força ou por mero encosto, ela se estabanou no chão. Bateu a boca no cimento que limitava a grama do piso do pátio.

Minha mãe conta, com verossimilhança, que ela quebrou um dente da frente, assunto de choro e de solução entre os pais. Afinal, éramos apenas crianças. Mas, ao escrever isso, sinto-me um sociopata, cometendo arbitrariedades a dois seres distintos em um mesmo dia. Talvez seja por isso que Deus, esse que agnosticamente não creio e nem nego, desequilibrou-me tempos depois quando andava sobre um meio-fio. Indo de encontro ao chão, os meus dentes de pernalonga logo se quebraram, fincando as raízes de leite na estrutura óssea. Prejudicou-me o nariz, a dentição perfeita e levou-me à minha primeira extração cirúrgica. Vão se os dentes, ficam as histórias.

A escola onde estudávamos era um projeto do governo para capacitação de normalistas. Depois do infantil, nos mudamos para um outro pátio, mais quadrado, com espaço para correr e cantar, obrigatoriamente, o hino às quintas-feiras. Separado por cobogós pintados de vermelhos, as normalistas estudavam-nos mais de perto a partir da pedagogia freireana da vida. Corríamos nos corredores para atormentá-las, invadíamos as suas salas e gritávamos como crianças que éramos. Na hora de correr, eu, asmático, parava após dez metros iniciais tendo que lidar com a falta mortal de ar e a bronca que levaria ao ser capturado. 

No quarto ano do fundamental, Tatiana tinha seus 10 anos. E eu, sempre ali com ela, vivíamos um relacionamento abusivo. Na falta de conhecimento, expressávamos o sentimento com puxões de cabelo. Ambos ficamos sem muitos fios desde então. Mas não havia bronca que nos separasse. Era uma espécie de cumplicidade de contato. De tempos em tempos, surgiam algumas antipatias, mas logo sanadas pelo próximo dia escolar. 

Nessa época, tinha um grande amigo que me incentivou a ser são paulino, tamanha sua influência. Até karatê lutávamos no intervalo. Mas me falta a memória de onde ele ficava nessa história com Tatiana já que antes, uma vez juntos, já fomos xingados de maricas pela professora do segundo ano após nos aventurarmos em abrir, no banheiro, uma cerveja. Sem bebê-la, ela foi parar no mictório. Éramos três meliantes ao todo, nós e o ingênuo que trouxe a cerveja do pai. Obviamente, Tatiana não participou. Mas algum menino invejoso nos viu e nos caluniou à direção. Seria Hugo o cagueta? Sei que o reencontrei depois na jornada escolar. Mas a memória do crime me fez apagar alguns dados visuais e históricos a fim de seguir a vida sem tantas penitências. 

Parênteses esses abertos para dizer que, saindo do quarto ano, último período ali oferecido, todos nós tomamos destinos diferentes. Maycon foi pro mesmo colégio que eu no quinto ano, Tatiana desapareceu e Hugo, este o reencontrei na sexta-série quando me mudei de escola novamente. Se era o mesmo Hugo, confesso, tenho minhas dúvidas. Mas Hugo e eu nos tornamos colegas, compartilhávamos atividades extra-classe e, de certa forma, me senti redimido por algo que, caso fosse ele, não tinha lembrança ou significância. Monge Hugo, capaz de esquecer e de colar grãos com a sábia paciência dos iluminados. Mas assim é a vida, cada um põe importância naquilo que mais o aflige. Hugo, provavelmente, conseguiu ir ao intervalo naquele fatídico dia. Talvez a professora soubesse que eu não era o Hugo e que estivesse suspirando por Tatiana. 

Fechando o parênteses, e antes de chegarmos ao ponto de virada dessa história, vale destacar que na sétima série fui para a escola da vida, ou melhor, para o Centrão 02. Escola pública essa aglutinadora de experiências e pessoas diferentes. Tatiana não estava lá, mas revi Maycon, não tão próximo, mais adulto. Afinal, tinha ido ao Centrão um ano antes. De toda forma, tínhamos ali nosso respeito mútuo e, mesmo eu nerd, era tratado bem nos grupos de truco e na galera do skate. Mas continuava a ser um outlander de tantos lugares. Por falar em amizades, também não há como deixar de registrar o reencontro com outro amigo de uma vida, o Everaldo. Esse amigo que me acompanhou desde muito cedo lá na escola normal – assim era chamada, fazer o quê –  como também me acompanhou da sexta-série até o primeiro mês do início do ensino médio. 

E Tatiana? Por que não focar nela? Calma, é importante o contexto. De tão amigos que éramos, Everaldo e eu nos tornamos uma dupla de deboche na sala de aula. Aqueles que não se enquadram como os másculos hetero-top do fundão, mas que sentados na frente não deixam de ser felizes se apaixonando pela menina bonita de nariz empinado e desafiando a paciência da professora de Português. Acho que meu destino seria diferente se ali ficasse. Provavelmente, mais atentado. Contudo, eis que chega o plot twist esperado e, sim, iria me reencontrar com Tatiana muito em breve. 

Um mês depois do Centrão, professores que me acompanhavam nas atividades extra-classe com o Hugo alertaram minha família, humilde sem ser boba, que eram capazes de conseguir uma bolsa escolar de 70% para mim e meu irmão a fim de estudarmos com as melhores cabeças. Pelo menos, assim era o discurso da escola que me fez reencontrar Tatiana. Pelo que soube, ela fez uma migração bem mais precoce ao ensino pago, adaptando-se aos luxos da classe média emergente. Eu cheguei rastejando, com dificuldades de adaptação. Mas lá estava eu, sabendo que, mesmo não sendo antes a melhor cabeça, tinha lindos fios de cabelo tais quais Tatiana. E ali não iria puxá-los mais. Na flor da adolescência, se soubesse que puxar cabelos tinha um outro tipo de objetivo, talvez assim o almejasse com mais volúpia. 

Ela, Tatiana, estava ali perto de mim. Os cabelos eram os mesmos, possuía a baixa e frágil estatura de sempre. Meiga. Só que éramos reais desconhecidos. Eu lembrava dela. E ela talvez fizesse alguma associação ao passado por causa do meu diferente nome. Ela tinha vivido um mundo sem tantas transições escolares, tinha criado raízes. Tatiana, aos seus 16, me reencontrou, ouviu que eu lembrava dela. Não tocamos no assunto capilar. 

E foi só, ela ficou sem seu antigo amante, pois durante o segundo e o terceiro ano do ensino médio me apaixonaria por outra pessoa, a quem o sentimento não precisava de escândalo para ser visto. Bastava encostar a cabeça no ombro e, assim, construir uma história a dois. Óbvio que nenhum primeiro amor sobrevive a picadas de abelhas – basta ver o que ocorreru com Anna Chlumsky e Macaulay Culkin em 1991. 

E muito menos a puxadas de cabelos.  

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