Noé à deriva

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José virou Noé desde criança. Das brincadeiras infantis, sentia-se confortável em ter apenas uma folha de papel e um pouco de habilidade no origami.

A primeira dobra central dividia a folha ao meio. Depois, as orelhas voltadas para o centro. Dobram-se as abas para formar um chapéu. Daí em diante, desenvolveu rapidamente a habilidade de juntar as extremidades, dobrar novamente e puxar as pontas, a fim de se tornar barco. 

Na poça d’água encantava-se com o movimento de algo tão frágil e permeável. Sentia-se marujo, capitão, passageiro. Houve dias em que tentou carregar a embarcação, mas acabou descobrindo seu primeiro naufrágio. 

Os colegas da escolinha jogavam futebol de meia, de meia bola, bola furada. Na terra, cada chute era poeira ao alto e unhas encardidas. Mas era na chuva que José se animava. A água escorria, formava-se corrente e iam-se seus novos barcos, feitos de latinhas de vasilhames ou de garrafinhas pet. Onde havia uma tampa plástica, repousava José na proa. Ia junto com a maré, dobrava as curvas de rios, deliciava-se sozinho.    

Os poucos que conviviam com ele gritavam zombarias, torciam para que sua ambição pela flutuação desse água. Para Noé ou José, já não lhe fazia mais importuno, bastava-lhe aperfeiçoar a técnica. Dentro das paredes de adobe, com o professor comunitário, pouco se sabia de matemática ou português. A física do empuxo e a lógica das densidades não chegava aos seus ouvidos. Tinha que testar material por material. Um dia, estava ele soltando objetos na cisterna da chuva. Jogava um sabugo de milho e segurava outro embebido de diesel, pegando fogo. Via, na escuridão, os feitos de seus experimentos. 

A mãe logo lhe pegou de jeito, com as mãos queimadas, a sobrancelha chamuscada e o fosso cheio de objetos. Na manutenção forçada, retirou-se do fundo pedras, tijolos, pedaços de ferro e garrafas de vidro. Na superfície da água barrenta, ficaram os plásticos, as espumas e pedaços de madeira. 

Na adolescência, passou a explorar a região. Da pouca mata presente, havia um bocado perto de uma fazenda de gado, repleta de filhas bonitas e curiosas com o mundo. Adentrou-se entre galhos e folhas esverdeadas até ouvir o som de uma pequena queda d’água que se enveredava córrego abaixo. Nunca tinha visto nada parecido, tal qual a menina sardenta que ali tomava banho nua. Ele não conseguia recuar, sabia dos riscos, mas estava tão encantado pelas borbulhas da água ao se chocar nos pedregulhos, e pelo percurso da água sob aquelas curvas tão lisas. 

A menina o viu. Era pouca vegetação para esconder tanta novidade. Ruborizou-se de início, mas logo optou pela melhor performance. Tomava um banho com plateia exclusiva, tão ingênua e encantada que lhe despertou desejo. Fez tudo lentamente, voltou a pôr o vestido florido e escalou o morro no sentido do casarão. 

José desceu, resolveu tomar o mesmo banho. Colocou na água folhas, galhos e outros materiais que lhe fizessem jus à sua investigação náutica. Tirou seus trapos, sentia-se limpo em meio a tanta água. Parecia que a água e a visão da menina o faziam ter um orgasmo de tanta felicidade. Por um momento, deixou-se boiar.

***

Noemia acordou animada. Havia tido cólicas dias atrás, mas hoje parecia renascida. Já se passaram dois anos desde que sua mãe lhe chamou de mulher. Saiu sem limpar o rosto, focando a vista somente para enxergar as nuvens cinzas que se formavam por ali. Arrancou uma carambola do pé e a comeu com volúpia. Aquele gosto azedinho e saboroso. Não era de doces. Preferia o cítrico, o cheiro da madeira, o sabor da acerola. A manga, comia verde e com sal. No café, café. Sem leite. Respirava a terra molhada, olhava para o fogão a lenha. Pensava já no almoço. Estava faminta de vida. Queria apagar aquele calor momentâneo, era como se fosse uma serpentina que lhe esquentava o banho. Tinha outras irmãs, algumas em idades mais próximas, também ansiosas no dia. As menores não entendiam tal ímpeto. Queriam apenas brincar de boneca.

Noemia pensava nas nuvens carregadas, pensava em banhar-se de chuva ou de lua. Parecia estar movida por uma corrente de vida. 

Os irmãos mais velhos ordenhavam as vacas, tocavam os bezerros e treinavam com a espingarda. O mais bruto censurou o sorriso bobo de Nô enquanto furava o tronco de uma árvore. Para ela, tamanha ignorância era herança do pai. Morto cedo, queda de cavalo, deixou os filhos poucos formados virarem os protetores do lar. A mãe, sofrida com tantos filhos a cuidar, ainda tinha que cuidar das fraldas da mais nova. Pedia auxílio para quarar os panos, mas as meninas não pareciam estar dispostas a isso, não hoje. 

Cada uma deu seu jeito de escapar. Uma foi até a venda, a outra disse que iria estudar com a amiga do rancho vizinho. Nô disse que iria colher uns ramos para decorar a mesa do almoço e se esvaiu rumo ao córrego. 

***

Já era mais de hora que Noé estava lá, testando sua própria densidade. Nesse tempo, Noemia que não tinha ido totalmente embora, voltou-se delicadamente até o córrego, despiu-se de qualquer vergonha e flutuou ao lado de José. Sequer disseram seus nomes, apenas aproveitaram o gosto da carambola na boca de Nô e a técnica instintiva de navegar de José. 

Noemia fez, do corpo ainda franzino de José, caminhos com os dedos. Ele, por um momento, esqueceu-se do seu desejo de pilotar uma embarcação. Tornava-se, naquele momento, o próprio barco. Sentaram em uma pedra, ainda dentro da água e buscaram explorar todos os elementos disponíveis. Primeiro os cabelos, o rosto, mais beijos. Alguns risos desajeitados até uma vontade que surgia em José de fazer de Nô, porto. E ela queria prová-lo com sal. 

***

Perto do almoço, com gotas que caiam grossa do céu, a mãe ordenou ao mais bruto que chamasse Noemia. O céu ao fundo que antes era escuro, agora parecia apenas fumaça. Ele, cismado, carregou a espingarda e seguiu os rastros pelo mato. 

Cansados e satisfeitos, Nô e José sentiam o filete da vida aumentar. Não sabiam se o fluxo que vertia com intensidade era impulsionada por seus corações ou pela correnteza. Estavam ilhados em maré alta, marinheiros de primeira viagem. O resto parecia alagado e afundado. 

Ouviu-se um estrondo após o forte brilho do alto. A tromba d’água veio forte. Em meio à água avermelhada, abraçaram-se até se transformarem em uma só barca.

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