Desse respeito

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Neste sábado, 26/3/2022, completei 10 anos como jornalista de uma empresa pública de comunicação no Brasil. São 120 meses da minha vida, 3650 dias. Entrei na leva dos primeiros 25 jornalistas concursados da recém-criada empresa, que conta com quatro centenas de jornalistas no quadro. Por que não a nomino aqui? Por serem tempos difíceis para quem não tem poder, e fáceis para aqueles que controlam as regras do jogo. Então, na ausência da garantia do direito de me expressar sem perseguição, cabe-me aqui prestar contas públicas da minha figura física, uma vez que exerço uma função pública registrada diariamente no meu cadastro de pessoa física, este nosso conhecido CPF.

As normas de Direito Público devem ser seguidas por servidores ou empregados da Administração Pública Direta e Indireta. E o meu trabalho de jornalista público não difere disso. Portanto, direciono-me aos mantenedores do Estado, a população. É a ela que me dirijo com algumas considerações sobre o que significou essa década pra mim. E as digo do jeito que sei, falando como se fosse um texto direcionado a amigos, em uma triste crônica daquilo que adoraríamos que fosse apenas um pesadelo ou fruto de um conto de terror com gosto duvidoso.

Individualmente, e principalmente ao lado de poucos entusiastas, creio que fiz algum impacto no microcosmo a partir das matérias que escrevi, das implementações multimídia que realizei, dos projetos de jornalismo digital que propus, nem sempre bem vistas por criticar o status quo. Muitas dessas iniciativas constaram nos relatórios de ouvidoria, conselho curador e outros fóruns como exemplos do que a empresa deveria exercer enquanto uma empresa de comunicação. Obviamente, sou apenas um funcionário e longe de acertar todas, até porque jornalismo faz parte de uma ciência social aplicada e, juntos, acertamos e erramos diariamente.

Incrivelmente, são 10 anos sem fazer críticas direcionadas, associações dúbias com o local que trabalho e personificação da figura pública enquanto um profissional da informação. E vou manter isso sempre que possível. Mas não quer dizer que me abstive do debate ou que não digo a verdade quando esta bate a porta (normalmente, subsidiando MPF, Justiça do Trabalho, ouvidoria e correição interna com dossiês ou relatos fundamentados). Antes desta manifestacão publica, é importante dizer que me mantive crente na mudança interna por muito tempo. E só agora fiz o luto necessário para a crítica tardia. “Antes de reclamar, faça algo. Ou, se não conseguir, faça reclamando, mas faça. Se não der, não adoeça”. Esse é meu lema, pelo menos agora. Pois bem, em 10 anos, posso dizer que fiz algo, que talvez não tenha sido tão efetivo coletivamente quanto gostaria. Por isso, me restam o desabafo e o alerta dos acontecimentos.

Foram 10 anos de empresa e, quem diria, não me demiti até hoje. Já cheguei a assinar um plano de demissão voluntária, desistindo dele no último instante. Também deixei uma procuracão com plenos poderes para a tal saída. Atualmente, esse é um ato que posso tomar de forma sã, de tal modo que decidi não fazê-lo por diferentes razões, entre elas, o aspecto financeiro. Não são tempos fáceis para assalariados – ou para aqueles que não usam cargos de confiança para mascarar a sua dura realidade.

Agora, se sobreviverei mais 10 ou 20 anos, rumo a aposentadoria ou não, é uma projeção tão fantasiosa quanto saber o que será da empresa daqui a 10 anos. O que posso precisar nessa década é que sempre me dediquei e me qualifiquei profissionalmente para entregar o melhor produto público possível. Meu currículo também é público. Por isso, não faz sentido redundá-lo. Tenho que me parabenizar pelo esforço e aceitar as consequências. Nesse quesito, tive bastante êxito. Já consigo visualizar mentalmente item por item, ano por ano, as diferenças profissionais e formativas que tive e proporcionei nesse período. Mas esse êxito individual me custou seriamente parte da minha saúde financeira, física e mental. Enquanto isso, faltou espaço para valorização de profissionais que estudam o que fazem (plano de carreira) e sobrou espaço para retaliação a quem questiona falta de método ou pede melhores práticas (métodos científicos, inclusive).

Hoje, já sem perspectiva de me despedir da empresa, talvez eu veja a empresa se despedir rispidamente de muitos de nós. Enquanto recupero-me de um procedimento médico, leio desabafos sinceros e passionais de colegas jornalistas apontando a última desumanidade empresarial cometida nesse cenário que vivemos, onde a gestão é uma formalidade de um modus operandi fadado ao escárnio da história, mas habilmente letal a quem está nele. A gestão funciona apenas como uma máquina de levar e trazer demandas de alguma instância superior. Eles só precisam operar a informação nas pontas. Para mim, tal movimento logístico só me lembra dos piores horrores de outros tempos que parecem querer invadir nossa realidade diariamente. (Vale a pena pesquisar sobre Adolf Eichmann, independente da dificuldade de qualquer associação histórica).

Nem sempre o que é legal é ético. Precisamos lembrar também que a legalidade é um princípio da administração pública que pode funcionar de duas maneiras e os gestores da empresa parecem convenientemente esquecer-se disso. Para os cidadãos, em geral, é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe e para a administração pública só é permitido fazer o expressamente previsto em lei. Mas é conveniente, muitas vezes, extrapolar os limites do que é legal.

Decidiu-se mais uma vez pelo pior, mesmo usando a o discurso de legalidade. Se o que ocorria há tempos já era nocivo, imagine quando chegarmos ao platô. A empresa não é, de longe, aquilo que deveria ser, mas o que já foi, independente de governos, se deve aos trancos e barrancos de trabalhadores que, “não sabendo que era impossível”, foram lá e fizeram. Mas parece não adiantar muito porque a caneta pesa mais do que a qualidade de um bom serviço. Descobrir petróleo é lucrativo. E petróleo não se questiona diariamente sobre sua poluição fóssil. Mas não somos a Petrobras. Já o jornalismo, esse sempre viverá sob o julgo de uma crise moral e ética.

Desses honestos e desesperados desabafos dos colegas sobre uma situação insustentável que se instalou, recordo-me vermelho, agoniado e problematizador em reuniões onde a pauta não era jornalística, mas feita para validar interesses políticos já definidos. E mesmo assim havia resistência coletiva. Agora, leio colegas de profissão a ponto de entregar a toalha, lamentando o tempo perdido com os filhos, a sensação de abandono, incerteza e desrespeito. É um movimento coletivo, mas forte do que eu mesmo poderia imaginar.

Uma das palavras que aprendi faz pouco e acho bastante válido utilizá-la para caracterizar as consequências do que ocorre agora é o absenteísmo. No caso, os funcionários continuam batendo ponto e fazendo seus afazeres, mas a força intelectual está ausente e doente. Há inúmeros casos de incoerência e a humilhação gigantesca pela qual passa um profissional que busca, no mínimo, a dignidade humana.

*Obviamente, o quanto ganho é público, já o que faço com esse dinheiro enquanto pessoa física só cabe a mim e ao controle dos órgãos competentes. Afinal, trata-se de uma troca de mão-de-obra por dinheiro. Mas não há dinheiro que pague a ética profissional e a capacidade de dormir sabendo que, apesar de tudo, não é você que está do lado de quem está canetando contra a própria espécie A esses atos, talvez até planejados com tal objetivo, só há espaço para a extinção.

**É isso. Fecho 10 anos sem direito ao segundo quinquênio pois, em uma canetada, congelaram os meses que estavam contando. Assim, o calendário corre, os funcionários envelhecem, mas o tempo dedicado não conta para tal. O tempo é o valor precioso que indignou funcionários mais uma vez. Tudo feito por uma canetada, um e-mail enviado e a completa frieza.

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