A última flor

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Aquela flor vermelha amanheceu morta. Mas não se faz necessário chorar sua morte. Era seu inevitável destino. Aquela flor era a última a reluzir alguma cor. Havia outra mais abaixo da árvore, murcha, a ponto de cair. Estando perto do inverno, é natural que as coisas caiam. No cerrado, você percebe a mudança de clima pela fumaça do carbono vegetal e pela poeira que se levanta aos poucos. E logo, logo redemoinhos metidos a gêiser cuspirão terra, abrindo as portas do inferno.

Porém, a flor vermelha perdeu a oportunidade de ser arrancada pelo árido vento. Foi subtraída por um pulo de outono, que a alcançou no ponto mais alto. Vieram juntas algumas folhas, mas a flor, mesmo colhida de forma abrupta, não sofreu lesões. Ou sofreu?

Tirar a flor de uma planta é antecipar a sua partida? Não valeria mais uma flor plantada do que várias cortadas? O fato é que ela não estaria bem no dia seguinte. De certo modo, morreria ali, apagada aos olhos de ninguém. Perto dos prédios que a circundavam, resistia apenas o verde frente ao solo semi-seco e ornamentos que mais pareciam bananeiras. Sim, em meio ao caos urbano, no bairro mais arborizado da cidade, “bananeiras” foram plantadas. É a possibilidade de se prolongar o verde em um cotidiano de concreto. Pena que não existam outras flores naqueles jardins. Verde demais é como o cinza de uma queimada: só chama a atenção quando um broto de vida renasce sobre o tronco chamuscado. Em meio ao desértico verde, a flor era a dama da noite.

E quem a buscava, já desanimado em encontrar outra cor distinta, enxergou o vermelho sobre os cortes de sua cabeça. Os joelhos gastos pediram mais um breve sofrimento: um salto para violar o seu último florir. Arrancou-a com gosto, como se fosse água no sertão. Posteriormente, a ofertou por pura vontade de demonstrar afeto ao seu doce encanto.

Diferente de outras antes entregues, esta não ocupou o adorno dos rebeldes e valorizados fios de cabelo da receptora. Ocupou logo a casa, com a intimidade de quem abre a geladeira. Repousou-se sobre a pia da cozinha dentro de um requintado copo d’água.

Sem galhos para que os vasos condutores a levassem alguma seiva durante a noite, sabia que seu ciclo logo se encerraria. Mas, acostumada a ver outras flores secarem antes, teve ali seu desbunde. No fundo, entendia que ajudava a enraizar algo mais etéreo do que as estações que ainda viriam.

Afundou-se no copo na esperança de ressurgir na próxima primavera, na mesma árvore, totalmente transformada, tal qual os presentados com sua efêmera existência.

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