A Coruja

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Certa vez, o cachorro de raça caminhava pelo descampado como se tivesse em si o dom de um vira-lata. Fuçava o que via com destemido interesse, preenchendo de carrapichos o pelo hidratado.

Tinha o hábito de, nos passeios matutinos, agir como se selvagem fora. Corria atrás das crianças sem escolher classe. Todas lhe ofereciam carinhos, alguns bem mais incômodos do que outros.

Quando oportuno, corria atrás de lagartos do cerrado, bradando:

– Suas lagartixas bombadas, vou pegar vocês!

Sua destreza em pular sofás lhe era útil para alcançar os rabos de suas virtuais presas, que ficavam pelo caminho. Das relvas, saruês assistiam ao (in)sucesso do cão:

– Lá vai o Luluzinho da Pomerânia meter o “spitz” onde não é chamado. 

Se ele veio da Alemanha a ou de um canil pouco famoso, não importava. O cachorro realmente se sentia digno do uso mais literal do termo alemão spitz: tinha o nariz pontudo e o metia onde precisasse.

Nessa desventura corriqueira, deparou-se com um buraco cavado em desordem. Bastante terra em volta, pouca precisão. Não era o trabalho preciso de um João de Barro, parecia mais obra de sacolejo.

Dentro, havia uma toca. 

Imaginou se tratar de algum animal que ele poderia caçar sem, necessariamente, cumprir a instintiva pirâmide alimentar. Ora, para se satisfazer tinha na tigela ração premium, além dos petiscos que ganhava ao simplesmente se sentar. Queria era caçar ali a novidade de outros cheiros. Mas pouco pode meter o nariz onde não era chamado. Em sua frente, sobrevoou uma agitada coruja. 

— Nem se atreva a mexer com meus filhotes – gritava a mãe a cada arremetida sobre o dorso do animal.

O cachorro não tinha essa malícia, não iria maltratar as duas corujinhas recém-nascidas. Ele sorria para a coruja como quem não quisesse ouvir os avisos da progenitora. 

Antes que o cão entendesse a gravidade do alerta, a tutora do cachorro o puxou para longe. Pensando se tratar do fim do passeio, ele latiu sinceros tchaus para a enfurecida Coruja. 

Na noite seguinte, o cachorro recebeu uma missão: escoltar a humana em busca de uma pizza. Enquanto ia, aproveitava o caminho para ativar seu intestino.

A guia retrátil o permitia alguma distância da mesa da pizzaria de onde a tutora aguardava o pedido. Enfiou-se, então, no meio de um jardim do prédio comercial. Já aliviado, procurava pequenas gramíneas verdejantes para ajudar na digestão. Foi quando ouviu não uma, mas várias lamúrias vindas do alto de uma marquise. Era a coruja, chorosa, que piava perdida. 

– Oi, dona Coruja. O que foi?

A reação inicial da ave foi querer atacá-lo em proteção ao seu ninho, mas logo se tocou que não mais o tinha e resignou-se.

– Oi, cachorro. Desculpe se o ataquei ontem. Te julguei mal.

— Sem problemas. Ei, você não está muito longe da sua cria, dona Coruja? E se os filhotes estiverem com frio? – A preocupação sincera do cão o distanciava de vez de suas origens primitivas.

—Parecia seguro. Veio um câncer e sepultou-me junto aos meus filhotes – dizia desnorteada para si mesmo. Eu só tinha ido buscar comida. Quando voltei, era tudo cimento fresco. Agora tudo está tão cinza quanto minhas asas sujas daquele calçamento impenetrável. 

Tal imagem pesou na consciência do cachorro. Será que ele não seria parte do problema. Afinal, o que significaria, a fundo, a sua domesticação? E se houvesse menos prédios, mais árvores, menos comodismo, mais liberdade, esse tal concreto ainda reinaria tanto? 

– Dona coruja, desculpe a pergunta, mas você está em cima de uma marquise feita do mesmo material que te entristeceu. Isso não te agonia? 

– Cachorro, já pensei em desistir, em atacar a cabeça de transeuntes, sair voando em desespero até uma janela qualquer. Porém, reconheço minha impotência. Te ataquei por defesa, e você não me fez mal algum. Já na real ameaça, não consegui proteger meus descendentes. Pensei se tratar de um lugar acessível, com tapumes para escondê-los da vizinhança e com uma terra soltinha pronta para cavar. Não sabia que ali a vida teria menos valor do que a dureza de uma pedra.

Fez uma longa pausa, arrancou algumas penas com o bico e só então continuou:

– Logo, só me resta viver o luto. Hoje não sou nada, meus filhotes não são nada. Amanhã, um pouco mais forte talvez, eu até poderei gerar uma nova ninhada, mais atenta e resiliente. Meus sucessores respeitarão os iguais em diferentes espécies, e desconfiarão das facilidades do homem. Se eu desistisse de vez, eles venceriam por inércia. Por isso, pouso em paz sobre este pedaço de concreto armado, mas nunca sob, pois eu voo, sou ar. Eles…eles não passam de pedra. 

O cachorro, mesmo com seu pelo e sub-pelo vistosos, sentiu um frio súbito, arrepiou-se e prometeu visitá-la em breve. Arrastado, a contragosto, pôs-se a caminho do seu prédio. A tutora o percebia menos confiante de si, menos cachorro, mais caricatura de pet. Ele, sem saber se conseguiria tirar uma lição do que havia presenciado, passou a noite com os olhos arregalados.

Na manhã seguinte, porém, sentiu-se grato pela água, pela comida e pelo passeio matutino que viria. De certa forma, não estava soterrado. Sua toca era apenas o oco da pedra. Na hora de caminhar, fez questão de passar perto da sepultada toca. Realmente, o que via era desolador. Estavam ali as marcas das patas da coruja, penas e lágrimas solidificadas naquela indigesta calçada da fama.

No momento de correr solto, demorou para agir até ouvir os risos de crianças que se entocavam embaixo de uma lona estendida entre duas amoreiras. Foi afoito para oferecer e ganhar carinho. Ao rolar na grama sob olhares inocentes, identificou, de relance, uma caixa de papelão acolchoada por trapos. Dentro, duas corujinhas com as penugens encardidas.

O cachorro respirou fundo e disparou rumo ao prédio comercial. A tutora vinha atrás, desesperada. Quando finalmente alcançou o lugar, não viu mais a coruja. Desde então, pôs-se a rodear diariamente a toca improvisada até que as duas corujinhas pudessem voar ao encontro de seus futuros irmãos.  

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