Em meio aos restos de couro e de pele queimados sob o forte Sol árido, o odor, a desidratação e a desesperança acompanhavam o homem, desgarrado de sua terra, inerte de sua própria consciência. Aos berros quilométricos, ele esbravejava seus desamores, a falta de apoio familiar, a infelicidade financeira e o pior, seu desencontro com a vida.
Não fazia muito que a vontade de pular da ponte e apagar-se da existência deixou de ser figura de linguagem e acabou em uma aglomeração às margens do riacho. Junto ao corpo estirado estavam aqueles que diziam reconhecê-lo. “Era tão inteligente, tinha tanto potencial”. Outros recordavam de sua falta de ambição: “o pobre coitado mal olhava para si, só pensava nos outros”.
Um deles, comentando sobre a sanidade mental daquele farelo de gente, aproveitou para pitar uma, duas, três vezes até que as cinzas se desprendessem de sua responsabilidade. Foi da mesma forma como amigo do afogado. Quando o homem estava inteiro, retirou-lhe a esposa, algumas ideias bem sucedidas e o próprio amor do filho.
Abandonado ao relento, o homem recuperou o fôlego e cuspiu um pouco das cascas esverdeadas que havia engolido ao se agarrar a um velho tronco retorcido durante o mergulho. Foi arrastado para a margem e ali ficou sob os cuidados dos urubus, sem saber se estava vivo ou morto.
Onde antes se percebia água agora era fogo. Uma bituca qualquer acordou o mato seco. Nada foi feito, pois achavam que não havia o que se salvar ali. O fogo se alastrou longe, primeiro pelos ramos quebrados da vegetação riparia. Depois, escalou as folhas como se fosse vento. Preencheu a noite, o dia, uma tarde e outra noite até se cansar.
Ainda no chão, em meio ao calor insuportável, o homem chorava, mantendo o riacho que o afogou e a si hidratados. Somente depois que os pequenos redemoinhos de brasa se aquietaram e o escuro enfim chegou, teve forças para se levantar e resolveu seguir o rastro deixado pela efêmera companhia.
Logo, percebeu que aquela caminhada pela devastação não fazia sentido. Faltava-lhe a água, a comida e, principalmente, uma sombra. Assim foi que encontrou a Embiruçu parcialmente queimada. Na falta de sombra, agachou-se lentamente junto ao tronco retorcido de uns dois andares de altura – estatura consideravelmente baixa em comparação a outras de sua espécie. Na hora do movimento, não sabia se o que estralava eram os ossos da terra ou os do seu corpo. Proferiu xingamentos até que a coragem o fez revirar o casco de um tatu-canastra e se alimentar do que conseguiu escavar. No amanhecer, finalmente descansava.
Já com o Sol no poente, o homem não acordava. A ventania que persistia não tinha muito a derrubar, mas um frágil galho se desfez sobre a cabeça do hóspede. Ele se assustou e, sem saber se a pancada realmente havia lhe afetado o juízo, começou a conversar com a árvore. “Deixe-me em paz, por favor, apenas isso”, chacoalhou-a. A resposta veio logo.
“Bastava não ter alimentado minhas raízes com sua miséria”, retrucava a árvore. “Se hoje estou aqui, retorcida, desse jeito, é porque, mesmo sem incomodar ninguém, fui atingida por vocês antes mesmo de me fortalecer. Mas eu não reclamo. Os periquitos também gostam de atazanar meus frutos na primavera. Eu me sacudo, às vezes, confesso, em busca de menor euforia. No verão, vocês chegam, e me escolhem como abrigo do Sol a pino. Vão embora sem se despedir toda vez que chove, deixando rastros de morte. O que parece orgânico como ossos de galinha ou sacos de batata só servem para atrair outros bichos. Da última vez foi um gato-do-mato, que gostou tanto de mim que resolveu me fazer de lar. Talvez o mesmo que esteja ali, irreconhecível, logo a sua frente. Ele veio, aninhou-se em mim, parecia doméstico de tão calmo. Deixei-o ficar. Repousávamos, eu sem a preocupação de lagartos ou saruês e ele, sempre com os olhos semi-abertos. Ter visto o fogo chegar deve ter sido pior do que a própria partida.”
“Mas como? Eu, um infeliz desafortunado, não estou te fazendo nada. Só quero deixar minhas costas confortáveis já que nem sombra você me oferece. Só essas flores brancas que se esbanjam por terem sobrevivido ao fogo. E esse pó preto, que eu não reclamo, já não sei mais o que são as roupas, o que são minha pele ou sua casca. Nem meus olhos se distinguem do resto. Então, a única coisa que te peço é para não jogar-se sobre mim”.
Sem dar muita trela, a Embiruçu continuou. “No outono, aqueles que estendem lonas em minhas companheiras mais distantes vêm aqui e retiram minhas painas. As amontoam em sacos de pano e assim dormem confortáveis à luz das estrelas e à beira da fogueira que esquenta uma sopa duvidosa. Mas o que eles queimam, eles enterram. Sabem que precisam de nós. Esses quem cito andam em bando, alguns cabeludos, com trouxas nas costas, ora grávidos, ora pequenos, ora grandes, ora encurvados. Estes últimos eu me familiarizo mais. Lembram-me das minhas gemas de rebrota pois são torcidos pela vida e ajudam-nos a manter o ciclo até o último suspiro, quando retornam ao nosso solo”
“Você está descrevendo os mendigos, os sem tetos, os esfarrapados”, comentou imaginando-se agora incluído neles. “Que sejam, mas não foram eles que zombaram de mim neste Inverno. Minhas folhas, essas já secaram, meus frutos se foram há meses, e as flores de hoje são mastigadas pelos macacos-prego que restam, e a paina, ou foi colhida, ou voou livre. Tenho apenas alguns galhos retorcidos. E frágeis, pouco densos, não aguentam serem penduradas. Mas parece que o barulho do estralo realmente incita a violência entre vocês vindos do asfalto. Aqui sobem, se balançam e me chutam. Quando são os pequenos, até entendo. Estão me descobrindo, mas os maiores parecem estar dispostos a me ferir com lâminas e palavras fortes, sejam de amor ou ódio. Querem me quebrar por inteira, achando que por ser leve sou também oca, só que minhas raízes fortes ainda alcançam a mesma água que brota do riacho. E meus galhos seguem o fluxo da mesma água que te jogaram. “
“Ninguém me jogou. Quis me matar. Assim poderia ter algum poder sobre mim. Eu lembro, subi no corpo de proteção da pequena ponte, calculei o ponto mais profundo e busquei cair com o corpo aberto para não ter chance de perfurar a água. Estava tão seco quanto você, mas não florido. Queria hidratar-me de vez, fazer parte deste adubo úmido que permite a uma semente se tornar gigante e resiliente. Mas até nisso eu falhei. Em um lance de olhos, a água já estava sobre o meu nariz e quis viver. Logo ali, na hora do impacto. Pois bem, devo ter conseguido efetivar o plano inicial logo depois, na hora do afogamento. Afinal, aqui estou, falando com uma árvore.”
“Não uma árvore qualquer, uma Pseudobombax grandiflorum, Embiruçu para os íntimos, ou acha que outro tronco qualquer flutuaria tão firme para te salvar?”
O homem respirou fundo, franziu os olhos e sentiu como se tivesse recebido cada machadada que agora via naquele toco de tronco a sua frente. Pois fez dele seu derradeiro banco. Depois de um tempo, começou a rir copiosamente do broto verde que teimava em crescer.