Doce batata

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Antes de dormir, seu Francisco resolveu contar uma história a seus netos:

“Na abandonada cidade de Ipatinhas, um jovem trabalhava em uma plantação de hortaliças. Cuidava do canteiro de batatas orgânicas. Tinha um metro e 50 e uma corcunda cultivada pela proximidade com tais batatas, mais bem tratadas do que os próprios empregados.

Não se sabe ao certo o ocorrido, a não ser baseado em fofocas que viraram lenda. Um dia, durante a colheita, o jovem cochilava bem no meio das trilhas de terra. Cuidadosamente, uma colheitadeira mecânica passou por cima da horta, revirando e trazendo consigo as batatas e, ocasionalmente, dois dedos esmagados de Chico, mesmo nome que preencheu na solicitação de indenização contra a modernidade que o decepou sem buzinar.

O que seriam dois dedos para um homem trabalhador? Tudo, pois perdia a aliança de sua então ex-esposa, o emprego por acusações de desleixo e a calma, típica de seu semblante estereotipado de caipira.

Foram 40 anos sem ninguém mais ver o Chicoitão, apelido que ganhara por tanto reclamar suas perdas quando abria as mãos na mesa do bar. Coitão, coitadão, era tido como um aleijado.  Ele poderia até ter ganhado alguns vinténs por danos morais por preconceito. Contudo, na cidade não existia sequer banco, muito menos escritório  de advogado, muito menos Justiça.

Depois de tanto tempo, nenhum causo interessante tinha surgido na batata…na pacata cidade de Ipatinhas. Somente um invento tão grandioso seria capaz de mudar a rotina local. E ele passou a ser anunciado por uma loja de um velho senhor recém-chegado. Era o mixer-tudo. Ele rala, pica, tritura e fatia. Nenhuma mãe poderia deixar sua cria longe de tal invento. Imagine só, cortar batata inglesa que nem aquela rede de lanchonete de cor mostarda que o povo conhecia da cidade vizinha.

O mixer-tudo era de fácil manuseio. Levantava-se a tampa de plástico transparente, colocava-se a batata e se apertava a parte superior da tampa para baixo. Como se fosse um escorredor de macarrão, as batatas deslizavam em palitos quase tão crocantes quanto o “cleck” que soava do aparelho. Só faltava fritá-las.

O primeiro lote de vendas foi um sucesso. No segundo, um folheto convidava os usuários a experimentarem outra modalidade do produto: fatiar batata doce. Seria revolucionário e mais saudável, mas infelizmente a tal batata não se adaptou bem ao aparelho.

Deixou exatamente 400 pessoas com dois dedos amputados cada.

O mesmo número exigido por Chico ao seu patrão para pagar as próteses dos dedos e conseguir ainda tocar seu violão. No total, quatrocentas pessoas e oitocentos dedos.  Chicoitão havia, enfim, aprendido a calcular seu infortúnio com juros e correção monetária”.

No final do causo, Francisco atribuiu ao incidente às batatas doces usadas, de qualidade inferior àquelas de seu tempo. E, claro, sugeriu a seus netos a evitar tecnologias e frituras desse mundo de hoje.

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